Baseado na história real de uma paternidade não reconhecida, o filme faz um uso solidário do diário filmado, mas nunca alcança uma proposição maior com as suas imagens
Davi Krasilchik
É sempre curioso tentar decifrar o quanto certos aspectos de um documentário conseguem ou não ser antecipados. Quando um autor se propõe a capturar, sem intervenção, o real, sobra uma margem para o objeto em frente à câmera e para as imprevisibilidades da vida. Nesse sentido, as lentes de Eu Também Não Gozei (2024) se destacam pelo respeito com um universo íntimo, ainda que as suas imagens acabem demarcadas pela passividade. O filme segue as tentativas da atriz e dramaturga Letícia Bassit em descobrir quem seria o pai de seu primeiro filho.
Aquilo é diferente de afirmar que a diretora, Ana Carolina Marinho, demonstra indiferença com relação ao que tateia. O projeto surge em comunhão com a história da amiga e nunca se rende à frontalidade das dores atravessadas por ela. Ele é menos sobre a vulnerabilidade de uma mulher atravessada por essa ausência e mais sobre as suas tentativas de preencher essa lacuna, seja pela reflexão, pela invenção ou simplesmente pela criação da criança, na época com apenas três meses.
Nesse sentido, chama a atenção como o olhar de Ana Carolina se dedica a diversos aspectos do cotidiano de Letícia. Ela observa as realizações da protagonista enquanto artista, deixando a essas passagens a possibilidade de retratar a relação entre a maternidade e o corpo. Existe uma preservação muito grande do último em sequências como a do pré-parto, evitando traçar uma correlação entre ele e os momentos de maior tensionamento.
Embora isso demonstre uma escolha claramente consciente – e em conjunto à montagem de Cristina Amaral –, tal lógica não ultrapassa a postura do olhar passivo apontada inicialmente. O filme divide seu nome com uma peça e um livro realizados por Letícia, que encontrou na arte algumas válvulas para a sua expressão. Alguns trechos do teatro são registrados, corroborando o domínio da personagem sobre si e o uso do corpo como manifestação. Mas esse retrato é encapsulado por essa mesma lógica de observação, pouco acrescentando às formas de mídia anteriores.
É como se faltasse um projeto maior de coesão entre as imagens, especialmente na reunião entre esse eixo artístico e o cotidiano. No que diz respeito à encenação da própria vida, por exemplo – a própria Letícia reconheceu, ao apresentar o filme antes da exibição, ter performado a si mesma, diante da câmera – surgem artifícios que nunca se completam exatamente. Ana pontilha recursos que poderiam ali ser extremamente bem aproveitados, mas que acabaram não recebendo tanto destaque ou, talvez, se perdendo na montagem.
Parte disso se manifesta na conclusão. Ainda que o filme seja sábio em se distanciar de simbolismos, não minimizando a complexidade do seu assunto, seria interessante observar maiores aspectos de Letícia em sua vida criativa. A banalização dos retratos de “Eu Também Não Gozei” minimizam o que poderia trazer um melhor projeto estético. Não pela qualidade da filmadora, não pela natureza em si dos enquadramentos, mas pela falta de iniciativa em propor um entrelaçamento mais forte entre a ausência e a criação.
Embora a espontaneidade do pequeno Pedro supra, também, esses espaços, sobra essa vontade de querer ver mais, uma vez que estamos falando de um meio imagético, do impacto do próprio registro na trajetória de Letícia. Resta esse projeto cuidadoso, sem dúvida, e inteligente ao minar quase totalmente a presença daqueles que escolheram não estar por perto, mas que em muito ganharia se tentasse se debruçar sobre como esse inconsciente criativo trabalhou para suturar essas intermitências.