O diabo na rua no meio do redemunho (2023): a superação da própria essência

O Diabo na Rua no Meio do Redemunho. Direção: Bia Lessa (Crédito: Divulgação)

Adaptando o clássico de Guimarães Rosa, “Grande Sertão: Veredas”, o filme dirigido por Bia Lessa prioriza um maximalismo técnico que antagoniza a transgressão ambicionada

Davi Krasilchik

Reconhecido por sua enorme influência na literatura, João Guimarães Rosa é considerado por muitos um dos mais importantes escritores brasileiros. Embora a sua linguagem esteja distante da simplicidade, é lembrada pela maneira como incorpora expressões tradicionais, redefine vocábulos típicos e propõe – ainda que modulado por visões sociais de uma outra época – um desenho do sujeito brasileiro.

Seria injusto afirmar que a adaptação da diretora Bia Lessa, O diabo na rua no meio do redemunho (2023), se desvincula dessa mesma investigação sociológica. Filmado inteiramente em uma sala de teatro, a obra flerta com o campo subjetivo inerente ao material fonte, se sobressaindo a qualquer tentativa de determinar uma tese limitada ao concreto. É notável que a obra reconhece a aura metafísica do original, filiado ao campo da sugestão e dos interstícios entre a imagem e a sugestão.

A suposta simplicidade do projeto transpira esse reconhecimento: são poucos os cenários que revestem as personagens, cabendo ao espectador complementar aquele universo onde os atores se transmutam entre homens e bichos. Mas essa ausência de maiores formalidades, todavia, tem validade, se contradizendo pela emulação de um rigor muito sólido para um projeto que se propõe à metafísica.

Seja pela lógica de inserção dos recursos de rompimento visual – como a manipulação do desfoque em alguns planos ou a subexposição de algumas áreas pelo alto-contraste –, ou pela escolha frenética  de cortes em determinados momentos, tudo parece atentar para a autoconsciência desse rompimento. É como se o fascínio pela própria capacidade de reproduzir, tecnicamente, esses efeitos, superasse a investigação inicial do filme. E tudo se traduz de forma higiênica, com quadros perfeitamente compostos, a exatidão do trabalho de luz sempre evidente e a produção, apesar de contida, ocupando cada centímetro da tela.

Não que isso signifique um apagamento completo das potências mais primitivas – no melhor sentido da palavra, de libertação do que há de interno. Dessa forma, ganha um maior destaque a maneira como a direção entende os seus atores. Oscilando entre planos detalhe, que destacam tiques e gestos específicos, e quadros abertos, em que se observam os efeitos dessa postura nos atores, o filme carrega consigo uma interessante sinfonia de corpos.

A forma como a câmera passeia entre os corredores de personagens, sobrepondo-os uns aos outros, brilha em um primeiro momento, mas também se esgota pela repetição excessiva do reconhecimento dos próprios atos. O filme acaba exigindo, de si mesmo, uma lógica interna inconsciente, que acaba racionalizando essa progressão de descontrole e mina as próprias possibilidades.

Ainda assim, é magnética a interpretação de Caio Blat, que percorre uma imensa gama de expressões com seu Riobaldo. O ator escalona esse exercício pela multiplicidade que o personagem oferece, se definindo a cada evidência da complexidade de sua personagem, buscando a própria humanidade enquanto tenta compreender sua relação turbulenta com o Diadorim de Luiza Lemmertz. Ela também investe nessa carapuça de indefinição, levantando dúvidas sobre a própria essência a cada passagem.

Merece igual destaque a presença do elenco como um todo, levado ao limite na exploração da corporalidade que exige uma constante metamorfose entre homem e bicho. Fatores como esses, entretanto, não apagam o ritmo exaustivo do longa, cansativo não pela suposta agressividade – ainda que os planos que quebram a quarta parede, ameaçando o espectador com o apontar de carabinas, remetam as formas mais carnais do nosso cinema –, mas justamente por sua inversão com um mapeamento engessado da estrutura narrativa.

Como um todo, resta um filme que esbanja, de forma negativa, um orgulho excessivo de si mesmo, sempre tentando superar o próprio espectador. Ainda que o material fonte seja de difícil assimilação, o projeto escolhe reforçar, mesmo que inconscientemente, justamente o que lhe afasta da universalidade, em detrimento de reconhecer a força de seus fatores mais terceiro mundistas. Mesmo com acertos, temos aqui um filme grande, em sua escala maximalista, e que diminui o que poderia ser um grande filme. 

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